Dois anos após
demolição de beco e inauguração do Condomínio Vitória,
seus moradores
renovam suas casas, suas lutas e sua relação com a chuva.
Nuvens pesadas e cinzentas se aproximam dos
telhados do Condomínio Vitória, no Rosele, bairro da cidade de Araçatuba.
"Parece que vai chover", comenta a moradora Cícera Maria dos Santos
em um tom despreocupado. Sua fala é entrecortada pelo vozerio de crianças que
atravessam a rua com brinquedos a tiracolo. Há dois anos, as famílias que hoje
habitam o conjunto de imóveis ocupavam barracos no Beco da Esperança,
localizado em uma APP
(Área de
Preservação Permanente). E quando a chuva
ameaçava chegar, a reação automática dos adultos era colocar sobre móveis mais
altos seus pertences e seus filhos pequenos para salvá-los, respectivamente, do
estrago e do afogamento. A enchente era uma certeza, o prejuízo outra.
Um pouco mais de dois anos e dois meses separam
essas duas formas de se relacionar com a chuva. As antigas habitações na rua
Santo André, a cerca de 1,2km de distância, foram demolidas na manhã de 11 de
março de 2010. Na da mesma data, 38 famílias receberam da Prefeitura as chaves
de suas novas casas. Cícera e os outros moradores têm consciência de que
residir em moradias próprias, longe do risco de alagamento, não é um presente
filantrópico. Sua realidade atual é resultado de sua organização e de décadas
de reivindicações, um capítulo de uma história iniciada com a fundação do Beco
da Esperança por Dona Cleusa Maria dos Santos, mãe de Cícera, e ainda não
concluída.
Foi em 1979 que a fundadora
descobriu uma área verde, na época abandonada pela prefeitura. Lá, sozinha
capinou um terreno onde construiu seu barraco. Ficava em meio ao mato e aos
insetos. Dois anos mais tardes, surge Cícera. Segundo ela carregava seus poucos
pertences e sua fé para que juntas pudessem enfrentar as adversidades.
PRIMEIROS MORADORES
Em 1990, os primeiros vizinhos de beco começaram a aparecer. Todos
eles originados de famílias desabrigadas, a maioria despejadas de casas de
aluguel após perder o emprego. Com avanço do tempo, contabilizaram 49 núcleos
familiares, número posteriormente reduzido para 38. Cada uma delas edificou sua
própria moradia com os materiais que dispunham: tábuas, telhas, madeira e umas
poucas de tijolos.
No ano de 2010 (período anterior à sua saída do Beco) faziam parte
do total de 200 famílias araçatubenses com casas construídas em APPs, pontos
com risco de serem tomados pelos mananciais durante a chuva.
Ao sair para trabalhar e notar o céu nublado, os moradores tinham
a noção do que perderiam bens naquele dia de aguaceiro. Já quando as gotas
começavam a cair e eles estavam em casa, colocavam seus pertences e suas
crianças nos lugares mais altos do casebre. A razão da inundação era que logo
na entrada do terreno, bem perto da casa da Cícera, havia uma vala de
escoamento, local onde o líquido acumulava até transbordar.
“Quando a água vinha, entrava e varria tudo de uma vez, não dava
tempo de fazer nada, só erguer as crianças”, relembra.
Dona Rosemar, conhecida como Rose, uma das moradoras mais antigas
do beco, mudou-se para o local em março de 1995. Um dos moradores cedeu um
cômodo de sua casa para ela, o marido e os cinco filhos. “Conheci um senhor que
agora nem lembro o nome dele mais, acho que era Ceará, que deu um cômodo para
eu morar. E lá eu fiquei até o fim, 17 anos. Não tinha banheiro, não tinha
água, não tinha luz e não tinha nada. Era eu, meu marido e os cinco filhos em
um só cômodo.”
ÁGUA CONTAMINADA
As famílias tomavam banho, escovavam os dentes e bebiam água não
tratada, retirada de um poço. Em tempos comuns, os moradores do beco a
consideravam boa para o consumo, mas nos dias de temporal, a enxurrada
penetrava nos banheiros, enchia as latrinas e arrastava seu conteúdo pra dentro
do reservatório. “Minha mãe pegava um pano branquinho, porque minha mãe era
muito caprichosa, colocava o pano branco na boca do pote e coava a água para a
gente beber”, relata Cícera, rindo da situação.
Sete dias foi o recorde de tempo que os residentes do beco
chegaram a passar com as casas alagadas, enquanto móveis, geladeiras, fogões,
alimentos e documentos eram engolidos pela chuva. Como não tinham para onde ir,
eles esperavam ali mesmo o solo secar, para voltar à normalidade. “Em dias
ensolarados, eu colocava o colchão no sol, lavava as roupas tudo de novo, e ia
atrás de assistente social pedindo cesta básica, tentando conseguir papel para
tirar todos os documentos de novo”, explica Rose.
Por contaminação da água, as crianças tinham feridas abertas em
todo o corpo. Sua aparência e a dificuldade de manter as roupas limpas na época
de alagamento resultavam em sua exclusão das comemorações estudantis. Rose
recorda que isso não acontecia só com sua família. “Nas festas da escola, ia
todo mundo bem arrumadinho, não deixavam nossos filhos participarem”.
Sapos, insetos e até animais peçonhentos como cobras eram trazidos
para dentro das casas. A dengue também afetava a área. Quando dona Rose
contraiu a doença pela sexta vez, pensou que ia morrer.
Num ar de descontraído, as duas moradoras revivem em mente algumas
das brincadeiras que faziam em meio às dificuldades. “Tinha um barco velho,
você lembra?”, (pergunta de Cícera direcionada a Rose), “A gente botava esses
meninos dentro do barco, e nós brincávamos dentro do barco. Nossa vida era
essa, porque não tinha nada do bom. Não tinha roupa para a gente vestir, a casa
cheia de água, então nós entrávamos no barco e ficávamos lá dentro
(gargalhada). Nós tirávamos uma alegria da tristeza”.
Foi então que conheceram o líder de bairro Edson Lopes, que se
sensibilizou com a vida que levavam os moradores e decidiu ir atrás das
autoridades para ajudá-los, juntamente com a Cícera.
Moradores
conseguem terreno para construir casas
Lopes
funcionou como ponte entre a família da fundadora do Beco da Esperança e o
poder público. Presidente da Sociedade Amigos dos Bairros TV, Primavera e São
Sebastião, ele divulgou entre a mídia local a situação em que Cleusa, Cícera,
Rosemar e os demais ocupantes da área verde viviam.
Por suas cobranças junto às autoridades do município,
assistentes sociais verificaram as condições das moradias. Organizados junto ao
líder comunitário, os habitantes do beco tiveram contato com o então prefeito
de Araçatuba, Jorge Maluly Netto. Os primeiros efeitos concretos de suas
reivindicações vieram no dia 13 de abril de 2002: a inauguração de ligações de
água e esgoto na região do beco pelo Daea (Departamento de Água e Esgoto de Araçatuba). Foram construídos 300 metros lineares de
redes, uma obra que custou R$ 15 mil à Prefeitura.
No mesmo ano, Lopes morreu, seguido por dona Cleusa em
2003. “Ela faleceu em 9 de maio, perto do dia das mães. Eu me afundei, mas
lembrava das palavras dela pedindo que não deixasse aqueles sonhos morrerem
junto com ela”, conta Cícera. A filha da fundadora, apoiada por seus vizinhos,
deu continuidade às cobranças da comunidade. A repercussão disso foi a
aquisição da Prefeitura um terreno para receber um conjunto habitacional. Foi o
primeiro passo de um projeto orçado em R$ 652 mil. Em julho de 2008, os
moradores do beco reunidos em mutirão deram início às obras de construção na
área doada.
No grupo predominava a presença feminina. “A primeira coisa
que nós fizemos aqui foi carpir o terreno. A segunda coisa foi planar a terra.
Fazer radier e depois a parede. Só dava mulher aqui. Ainda hoje eu tenho marca
do radier, seu voltou e me rasgou tudinho”, detalha Rosemar, ao mesmo tempo em
que expõe uma cicatriz rosada no antebraço, com uma pontada de orgulho na fala.
ENTREGA DO CONDOMÌNIO
Concluído com a entrega das chaves no dia 11 de março de
2010, o projeto envolveu três administrações municipais. Maluly teve seu
mandato cassado, foi substituído por sua vice Marilene Magri a quem Cido Sério
sucedeu. O último prolongou as obras, contratando a ENGESCAV Construtora para auxiliar o mutirão em sua
execução. Além da edificação de 38 residências, o condomínio contou a
instalação de aquecedores solares doados pela indústria Transsen e de lâmpadas
econômicas nos postes e nos cômodos das casas, e o planejamento de paisagismo.
Até a conclusão, outras empresas o órgãos ofereceram
parceria à iniciativa: CPFL
Energia, Vega Engenharia, JN Construtora, Locatelli Paisagismo, UniToledo
(Centro Universitário Toledo, UNIP (Universidade Paulista), AES Tietê, Fernando
Rahal, USP (Universidade de São Paulo). Pintadas em diferentes tons beges
alaranjados, as casas ocupam 43,18 metros quadrados cada e possuem dois
quartos, sala, cozinha e banheiro.
“Falaram assim, a chave está na mão de vocês, agora lavem a
casa e mudem. Nem lavei a casa, já vim com a mudança”, revela Rosemar. Para
manter a posse, os novos moradores são impedidos de realizar atividades
comerciais no Condomínio e é proibida a venda dos imóveis.
Cícera passou a noite da entrega do conjunto em um
hospital. Sua pressão se elevou com a emoção. No mesmo dia em que as pessoas
que até aquele momento moravam no Beco da Esperança se instalaram no Condomínio
Vitória, suas antigas habitações foram demolidas. O primeiro barraco a ser
demolido foi o de Renata Anderson da Silva. Outros 37 caíram. Em seu lugar a
Prefeitura plantou árvores.
8,8 mil metros quadrados em processo de reforma
Grama e coqueiros foram trocados por cimento e tijolos na maior parte das
fachadas. Dois anos após sua fixação, os portões do Condomínio abrem para uma
área de 8,8 mil metros quadrados em processo de reforma. Apoiados em um muro
recém-construído, os montes de areia sinalizam a continuidade da reestruturação
empreendida pelos próprios moradores. Erguidas para proporcionar uma maior
privacidade aos habitantes, paredes ainda sem pintura contornam algumas das
casas. Uma das residências ostenta um portão corrediço e outra ainda tem na
nova porta uma demonstração de renovação.
Localizada no bloco B, a casa de Vitalino da Silva Gomes se destaca pela mão de
tinta azul clara (cor escolhida porque ficava bonita nas casas da cidade), tão
distinta das nuances bege e salmão predominantes no condomínio. Uma pintura com
bichos da fauna pantaneira, feita pelo amigo Paul César, torna ainda mais único
seu lar. “No beco, não tinha como personalizar o barraco em que morava",
compara. O exterior da casa que ocupa sozinho é também um exemplo de asseio.
"Como dizia minha mãe, não importa a cor da roupa, mas sim se está
limpinha”.
Gomes é proprietário de uma das poucas varandas que mantêm o gramado, os
canteiros e o pé de coco. "Depois de um tempo, muito de nós tirou os
coqueiros e cimentamos as entradas. Quem passa a vida toda no meio do barro não
quer saber de terra", justifica Cícera. O interior de boa parte das
casas teve cômodos azulejados, ganhou forro e pintura.
No outro lado, com a demolição dos barracos, o cenário do antigo Beco foi
desativado para habitação e reflorestado pela Prefeitura.
CÍCERA FAZ UM CENSO INFORMAL
As mudanças nesse intervalo de tempo atingiram
também o campo demográfico. Cícera caminha pela via em formato de "U"
que divide o conjunto habitacional e com os olhos fechados faz um censo
informal. Ao apontar para cada casa, lembra o número de seus habitantes.
Contabiliza 137 pessoas. Entre essas, sete são crianças nascidas após a mudança
para o Rosele. Dona de um rosto rechonchudo emoldurado por cachos dourados,
Ashley Emanuele Alves Fernandes, neta de Rosemar, foi o primeiro bebê do Condomínio.
Em abril, completou dois aninhos.
Em contrapartida, Claudete Maria dos Santos, irmã
de Cícera, faleceu há quatro meses, deixando vazio um dos imóveis. Entre os
adultos, poucos (seis ou cinco, segundo Cícera) estão desempregados. Alguns,
como Rose, partem de manhã para a zona rural, onde trabalham em roças. Há quem
trabalhe no Seasa, no shopping Center de Araçatuba, no Daea, na fábrica da
Nestlé, outros são lixeiros.
Por esse motivo, eles se alternam como ouvintes
nas palestras mensais realizadas à tarde no condomínio e partilham com os
ausentes o conhecimento adquirido sobre alimentação, saúde entre outros temas.
Na maior parte, os moradores são familiares. Nove das casas são ocupadas por
parentes de Rosemar. Cícera é vizinha dos próprios filhos.
NOVA VIDA, NOVAS LUTAS
Assim como o ciclo da vida, suas lutas são contínuas. A conquista
mais recente foi o compromisso da administração pública em asfaltar as ruas dos
arredores. Após a entrega da casa, os moradores reivindicaram a diminuição das
contas de água. “Nós fizemos protestos, fizemos abaixo-assinado, íamos quase
todo dia ao Daea, aí conseguimos. Pagava 60, 50 reais de água, hoje pago
10. A gente tem que ser insistente, tudo que conseguimos foi por luta”,
comemora Rosemar.
As 38 casas e a tranquilidade de seus moradores agora diante da
chova comprovam suas palavras. “Aqui nós temos sossego, a gente não anda no
barro. Está chovendo? Graças a Deus! A gente está sossegado aqui dormindo,”
conta o aposentado Balbino Ferreira dos Santos.
Por Rafaela Tavares, Guilherme Melo e Vanessa Canata
(Texto feito para a aula de Técnicas de Redação - Jornalismo Informativo)